O fato de haver pessoas em algumas regiões do Oriente Médio ao norte da Península Arábica (ou seja: ao norte da Arábia Saudita) consideradas etnicamente negras mas árabes quanto à cultura e língua, já está sendo apresentado, até certo ponto, na grande mídia. Por exemplo, no sul da cidade portuária de Basra no Iraque é possível encontrar uma população de tamanho considerável dessas pessoas de pele negra que acredita-se serem descendentes de escravos trazidos da África através dos séculos para aquela região. Conhecida pelos termos árabes zanji ou 'abd (cujos plurais são Zanj e 'abid respectivamente − sendo que 'abid é considerado mais depreciativo devido às conotações escravagistas). Os iraquianos negros sofrem de discriminação nas mãos de seus compatriotas de pele mais clara.
Além dos iraquianos de pele escura, há também palestinos de pele escura, cuja presença em Gaza foi o tema de um artigo no al-Monitor no final de 2013. Várias narrativas são apresentadas no tocante à origem desses palestinos, algumas salientando o comércio de escravos (como é o caso dos iraquianos) e outras ressaltando as migrações do Sudão e do Egito para servirem no exército do Império Otomano. Esses palestinos, assim como seus análogos iraquianos, também experimentam pelo menos alguma forma de racismo e discriminação da população em geral.
Embora muito mais obscura − a bem da verdade, praticamente não documentada, até onde eu sei - é a presença de uma população de sírios de pele escura. Eu me deparei acidentalmente com o assunto em fotos disseminadas pelo grupo Jaysh Khalid bin al-Waleed, filiado ao Estado Islâmico, radicado na Bacia de Yarmouk (em árabe: Hawdh al-Yarmouk) no sudoeste de Deraa, na fronteira das Colinas de Golã com a Jordânia. Observe atentamente as duas fotos abaixo. Em ambas é possível identificar um homem de pele escura no meio da multidão de espectadores.
A primeira foto faz parte de uma série de fotos sobre a decapitação de um suposto feiticeiro. A segunda faz parte da mais recente coleção de fotos postadas em 17 de janeiro pelo grupo Jaysh Khalid bin al-Waleed, realçando a execução de um mufsid (semeador de corrupção). A execução, ao que tudo indica, ocorreu na aldeia de Jamla. Segundo as acusações, o mufsid estava envolvido com a venda de drogas.
À primeira vista pode ser tentador achar que o homem de pele escura é um estrangeiro enviado para aquela região vindo do norte da Síria pelo Estado islâmico. Na realidade trata-se de um residente da região da Bacia de Yarmouk, pertencente a uma população de sírios de pele escura daquela área. Um amigo e ex-combatente do Jaysh Khalid bin al-Waleed que vive em Jamla me disse o seguinte: "nessa região há muitos deles (negros)". Na Bacia de Yarmouk, convencionou-se chamar os clãs e as famílias maiores pelo termo árabe bayt (literalmente "casa"). Assim sendo, na aldeia de Abidin na Bacia de Yarmouk, provavelmente os dois maiores clãs são Bayt al-Masri e Bayt al-Ghabaiti. O bayt que aglutina a maior parte da população negra da Bacia do Yarmouk é conhecido como Bayt al-Sudi. Na realidade o termo al-Sudi (em árabe: السودي) - provavelmente vem da cor escura da sua pele - que também é o nome da aldeia/área em que vivem.
Qasim al-Ghabaiti, membro do grupo Jaysh Khalid bin al-Waleed com a enorme barba ruiva que leu a ordem de execução do feiticeiro e que pode ser visto no fundo da primeira foto, explicou o seguinte: "o (Bayt al-Sudi) é um clã cujos membros têm pele escura, se assentaram em uma determinada região conhecida pelo nome de al-Sudi... al-Sudi é uma região que fica na Bacia de Yarmouk. Eles são árabes". Qasim al-Ghabaiti se recusou a dar a localização exata daquela área. O nome al-Sudi, ao que consta, não aparece em nenhum lugar no entorno da Bacia de Yarmouk. Meu amigo de Jamla deu mais detalhes: "eles (Bayt al-Sudi) são do pequeno vilarejo cujo nome é al-Sudi... Onde quer que se vá na Bacia se encontrará pessoas de pele escura". Ele disse que al-Sudi se encontra nas imediações dos dois locais mais conhecidos na Bacia de Yarmouk: Ain Dhikr e al-Shabraq na região norte da Bacia de Yarmouk. Conforme ele salientou: "al-Sudi, Ain Dhikr, al-Shabraq e Abu Hajr, estão próximas umas das outras. Al-Sudi é pequena, composta de algumas casas apenas. Há muitas áreas por aqui que não se sabe o nome". Nem meu amigo nem Qasim al-Ghabaiti sabem a origem exata dessas pessoas de pele escura, embora meu amigo tenha corroborado a ponto de se saber que não são recém-chegados: "eu não sei a origem deles, mas eles estão por aqui há muito tempo, ou seja, seus antepassados já estavam aqui".
Fora de Bayt al-Sudi há outros sobrenomes associados à pele escura, conforme disse meu amigo que em Jamla, há Bayt Abu Samir e também Bayt Abu Mara e na aldeia de al-Shajra também há um bayt de negros, embora ele não se lembre do nome. Outra fonte da Bacia de Yarmouk, Abu Kinana al-Yarmouki, apontou para a localidade de Jalin ao leste da Bacia de Yarmouk (atualmente fora do controle do grupo Jaysh Khalid bin al-Waleed) como tendo uma população considerável de habitantes de pele escura, além de salientar a existência de Bayt al-Sudi.
Lamentavelmente eu não consegui me comunicar até o presente momento com pessoas daquelas populações negras da Bacia de Yarmouk, mas a sua existência fornece uma janela interessante e pouco explorada sobre a diversa população da Síria no patamar micro. No norte da Síria, até onde eu sei, o fenômeno dos sírios de pele escura é praticamente inexistente e a sua presença parece não ser amplamente conhecida.
É altamente improvável que os sírios de pele escura ainda não tenham experimentado pelo menos alguma forma de racismo e discriminação. Dito isto, a ideologia do grupo Jaysh Khalid bin al-Waleed, bem como a do Estado Islâmico ao qual é filiado, pode despertar algum interesse na medida em que não dá importância à cor da pele e não defende o nacionalismo étnico e a discriminação com base na cor da pele e na etnia: na realidade o que interessa é a distinção entre muçulmanos e não muçulmanos. Em outros lugares, a abordagem de não dar importância à cor da pele pelo Estado Islâmico provavelmente o ajudou a fazer recrutamentos, o caso mais digno de atenção que me vem à mente é a Líbia. Conforme mostram os registros documentais, o Estado islâmico na Líbia recrutou um grande número de negros africanos estrangeiros em suas fileiras e uma explicação razoável para esse fenômeno é o fato de que os negros africanos trazidos para a Líbia como força de trabalho por Muammar al-Qadhdhafi enfrentaram ataques de represália e marginalização nas mãos dos rebeldes líbios durante e após a queda do regime.
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(Atualização 20 de janeiro de 2017): por alguma razão, o aplicativo de bate-papo que eu estava usando para me comunicar com as minhas fontes ficou mostrando as letras ya no final como em Alif maqsura (ou seja: السودى, quando deveria ser السودي). Assim sendo, a título de esclarecimento, o nome do clã para a maioria da população negra é al-Sudi e não al-Suda como apareceu em uma versão anterior deste post, de modo que eu corrigi esse pequeno equívoco. Este nome aparece notadamente em outras regiões do mundo árabe (por exemplo no Iêmen), mas não chega a apontar uma origem exata.
Um amigo de Nawa (outra cidade em Deraa que se encontra fora do controle do grupo Jaysh Khalid bin al-Waleed) destaca que Bayt al-Sudi também tem uma presença em al-Sheikh Saad (ao sul de Nawa) e que alguns deles se mudaram para Nawa. Além disso, este amigo aponta para a presença de negros em Tasil e que as histórias que circularam sobre suas origens apontam para sua terra ancestral como sendo o Sudão.